ABBA Voyage: o futuro do entretenimento ao vivo?

Abba Voyage em Londres: o futuro do entretenimento ao vivo?
Crédito: Johan Persson/Abba Voyage/Divulgação

O ano era 2006. Eu tinha acabado de assistir ao show mais impactante da minha vida. Daft Punk havia se apresentado no Tim Festival, na Marina da Glória, Rio de Janeiro, com uma catártica pirâmide de LEDs, lasers e sua sequência de hits.

Corta para quase duas décadas depois. Estou em Londres, saindo do ABBA Voyage, experiência que agora lidera meu ranking pessoal das mais impressionantes vivências tecnológicas no entretenimento ao vivo.

No palco, além da banda de apoio, não há uma única pessoa. A atração principal? Hologramas. Ou melhor: versões digitais hiper-realistas do ABBA original, reencarnado nos palcos com o brilho dos anos 1970.

ABBA Voyage é um espetáculo imersivo de 90 minutos, exibido em uma arena construída sob medida para a produção, com capacidade para 3 mil pessoas e funcionamento diário desde sua estreia em 2022. O impacto foi tão grande que, em apenas três anos, estima-se que o show tenha gerado 1,4 bilhão de libras para a economia do Reino Unido.

Os bastidores da produção do Abba Voyage

Durante o SXSW Londres, assisti à palestra “Making ABBA Voyage”, com Ben Morris, supervisor da Industrial Light & Magic (ILM), e Ludvig Andersson, filho de Benny Andersson (do ABBA) e um dos produtores do projeto.

Eles contaram que a ideia inicial surgiu em 2016, quando um empresário apareceu no escritório do grupo, em Estocolmo, com a proposta de criar um espetáculo holográfico. A tecnologia, na época, ainda não dava conta da ambição do projeto — mas o desejo estava plantado. A partir dali, começou uma jornada de mais de seis anos de desenvolvimento e testes, que mobilizou cerca de 850 profissionais de todo o mundo.

A captura dos movimentos dos quatro membros originais do ABBA durou cinco semanas, com oito horas diárias de gravação em trajes de captura de movimento. Segundo Ludvig, “eles não têm mais 30 anos, obviamente”, mas toparam o desafio com entusiasmo, mesmo diante do esforço físico exigido. O objetivo era “capturar suas almas”, como ele mesmo definiu.

A decisão de qual “versão” do ABBA seria retratada envolveu estudo minucioso: “no início, pensamos em fazer uma fusão geral, mas percebemos que a aparência do grupo mudou muito ao longo da década de 1970”, contou Morris. Após análise de milhares de fotos, filmes e slides originais escaneados durante a pandemia, a equipe decidiu recriar o grupo como eram em meados de 1979 — “quando os cortes de cabelo estavam no auge”, brincaram.

Os figurinos? Criados fisicamente, costurados manualmente por designers, depois digitalizados para uso em ambiente 3D. “Quando você começa a criar digitalmente sem um objeto físico como referência, pode se perder. Ao costurar de verdade, cada detalhe é uma decisão. Isso dá vida ao digital”, explicou Ben Morris.

Para manter o realismo, detalhes como stands de microfone tremendo levemente, o movimento de cabelos e vestidos foram cuidadosamente pensados. Nada poderia parecer robótico. Como disse Ben, “se for perfeito demais, o cérebro rejeita. É no imperfeito que mora a verdade”.

Um dos trechos mais emocionantes da conversa foi quando eles falaram sobre a reação do público. “O espetáculo não é só sobre nostalgia”, explicou Ludvig. “Recebemos relatos de pessoas que choram, que se lembram de entes queridos, de histórias de vida. O show se tornou quase um rito, uma cerimônia”. Em suas palavras: “é como uma missa pop”.

Uncanny Valley na prática

Durante o show, não é permitido usar câmeras. Isso também faz parte da mágica.

ABBA Voyage em Londres. o futuro do entretenimento ao vivo
Mas fica o nosso registro ainda fora da arena, em Londres.

E preciso dizer: é tudo tão perfeito, tão humano, que você acredita que eles estão ali, no palco, meio século mais jovens. É uma das experiências mais “uncanny valley” que já presenciei, uma estranheza que só quando a tecnologia se parece com magia pode proporcionar.

Desde então, sigo pensando: como conseguimos nos emocionar tanto com algo que sabemos não ser real? O que isso diz sobre nós, sobre o que buscamos no entretenimento?

De volta ao Daft Punk no Tim Festival, lembro um comentário que fiz a um amigo: “podia ser qualquer um dentro daqueles capacetes. A música pode ser inclusive uma gravação”. Mesmo assim, senti o que senti, e foi verdadeiro. Porque a presença não está apenas no corpo, ela mora na emoção compartilhada. 

Anos antes disso, quando ainda criança, meus pais me levaram ao Tivoli Park, no Rio. Lá, vivi talvez minha primeira experiência imersiva: uma mulher em uma jaula se transformava em Konga, uma gorila assustadora criada com truques de espelho e luz. Coisa inadmissível nos dias de hoje, mas os anos 80 foram assim. O fato é que perdi noites de sono com medo de ser atacado pela “mulher-gorila”.

Hoje, na era da IA, dos deepfakes, dos avatares digitais e dos influenciadores gerados por algoritmos, ABBA Voyage levanta uma pergunta fundamental:

Qual é o futuro do entretenimento ao vivo?

Será que veremos cada vez mais experiências sem presença de pessoas de carne e osso? Ou veremos mais colaborações entre humanos e máquinas como os do ABBA Voyage?

Só o tempo dirá. Por hora, fico com esse refrão — que ganhou novos significados depois do “show”:

“So I say thank you for the music, the songs I’m singing

Thanks for all the joy they’re bringing

Who can live without it? I ask in all honesty

What would life be?

Without a song or a dance, what are we?

So I say thank you for the music, for giving it to me”