“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”
Mesmo debaixo de uma chuva torrencial…
Mesmo sendo a primeira Olimpíada a usar a cidade como locação ao invés de um estádio…
Mesmo diante de um contexto político bastante tenso no país que passou recentemente por uma eleição que o dividiu…
Paris saiu com uma nota de corte altíssima, e conseguiu entregar uma cerimônia de abertura impressionante. No mínimo histórica.
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A abertura de uma Olimpíada é um clássico exemplo de evento híbrido (ou phygital, escolha seu termo preferido). Foi claramente desenhado para o streaming e, por consequência, o foco da experiência foi para quem estava assistindo de casa. Sorte a nossa rs
O storytelling audiovisual foi um espetáculo recheado de referências e fortes símbolos culturais que nos lembram o que a França já foi, o que é e, principalmente, o que pretende ser.
Liberté, Égalité, Fraternité?
O famoso lema francês até guiou o storytelling da abertura assinada pelo cerimonialista e diretor criativo Thomas Jolly, mas não parou por aí.
Afinal, “Paris 2024 é sobre apresentar ao mundo uma suposta nova identidade francesa que não tem vergonha do sucesso, mas visa alcançá-lo com base em valores de sustentabilidade, diversidade e inclusão, os equivalentes liberté, égalité, fraternité no século XXI”, como escreveu o jornalista Philippe Auclair para o The Guardian.
Como todo evento, as Olimpíadas refletem o espírito de seu tempo e isso fica ainda mais evidente nas aberturas. Seja de forma positiva ou negativa. Lembra da abertura de 1936 em plena Alemanha nazista? Pois é.
É uma oportunidade única no campo geopolítico de mostrar ao mundo como a cidade e o país desejam ser vistos e lembrados.
Não à toa, um dos momentos mais impactantes foi a transição de uma Maria Antonieta decapitada para a música revolucionária “Ah! Ça Ira” (“ah, vai ficar tudo bem”) interpretada pela cantora de ópera Marina Viotti e pelo Gojira – a primeira banda de metal a tocar em uma abertura de Olimpíada.
“Vai ficar tudo bem” parece simples, mas fica fácil entender o peso de uma declaração dessas olhando o contexto do país.
Essa abertura foi, acima de tudo, um show de inclusão e diversidade. De gêneros, corpos, cor de pele e idade.
Quem cantou o hino francês foi Axelle Saint-Cirel, uma mulher negra. Quem acendeu a Pira Olímpica foi o judoca Teddy Rinner e a corredora Marie-José Perec, ambos negros, depois de receber a chama das mãos do ciclista Charles Coste, que aos 100 anos é o o mais velho campeão Olímpico francês ainda vivo.
Pira Olímpica, aliás, que não tem combustão, mas sim LED e vaporizadores de água – reforçando o objetivo do evento de ser a Olimpíada mais sustentável da história.
E o misterioso personagem mascarado que guiou a tocha olímpica? Sem uma identidade cravada pela organização, a suspeita é de que ele representa diversos símbolos franceses como o protagonista do videogame Assassin’s Creed, o fantasma da Ópera e até mesmo Arsène Lupin.
A apresentação de Aya Nakamura, a cantora francófona mais popular do mundo, foi polêmica antes mesmo de acontecer, já que uma parte mais conversadora da França torce o nariz para o seu francês, como se os portugueses questionassem o idioma falado no Brasil. Mas a artista nascida em Mali foi um dos pontos altos da abertura ao trazer o pop e reinterpretar clássicos do francês Charles Aznavour junto à banda da Guarda Republicana. Tudo isso justamente na Pont des Arts, entre o Instituto da França (importante instituição com 5 academias de arte, humanidades e ciência) e o Museu do Louvre.
Esses valores também estiveram presente nas referências aos próprios Jogos Olímpicos – como na reinterpretação diversa da obra “Le Festin des Dieux” (A Festa dos Deuses) do holandês Jan van Bijlert. Aliás, viu a infeliz polêmica ao confundirem esse trecho com a obra “A Última Ceia” do Leonardo Da Vinci? Como diria Michel Alcoforado, “é tudo culpa da cultura”. Ou, nesse caso, falta dela.
Também fomos positivamente surpresos e impactados pelo “bloco rave”, que começou com um revival da euro/dance music dos anos 90 (super em alta esse ano entre a Gen Z clubber europeia) e que encerra de forma apoteótica no show de luzes da Torre Eiffel ao som de Supernature, do produtor francês de música eletrônica Cerrone.
Fica a dica: você pode ouvir de novo a playlist da cerimônia feita pela DJ Barbara Butch, disponível aqui.
Vimos uma França que tem orgulho de quem é – das passarelas de moda até o ménage à trois com referência ao clássico filme “Jules e Jim” – mas que busca também o diálogo e não é modesta sobre sua influencia no exterior.
Apesar de tudo, ça ira!
Mais uma vez, não podemos negar que a chuva se fez protagonista.
A abertura poderia ter sido mais preparada para as diversas condições climáticas? Com certeza. Mas choveu muito. Nada diferente do que aconteceu em vários festivais no último ano, do The Town ao Burning Man.
É ano de emergência climática e até nisso, a abertura conseguiu ser simbólica.
Mas não houve um tombo nas coreografias, um acidente, tudo planejado foi entregue e executado. Isso tudo, vale lembrar, pela 1ª vez fora de um estádio, usando 6km de extensão em meio a cidade.
Bônus: a tocha não apagou.
Não podemos subestimar a complexidade que é produzir um evento ao vivo com mais de 4 horas de duração, usando uma cidade como locação, com todos os olhos do mundo inteiro literalmente em cima.
Críticas sempre vão existir. A Lady Gaga foi gravada antes… Mas o que foi a Celine Dion superando sua dura condição para entregar aquele espetáculo (e que pode ser o último grande da sua vida)? O que foi o gesto dos franceses em convidar o Nadal, um espanhol, para ser um dos portadores da tocha Olímpica? Que momento, que momentos!
Muito respeito por quem bancou essa produção, foi lá e fez.
Como sempre, parabéns aos atletas dos bastidores.