Semana passada participamos de uma nova iniciativa da Heineken – a Beer Culture – uma série de eventos temáticos com o objetivo de discutir a relação entre marcas e cultura.
O primeiro desses encontros aconteceu no centro de São Paulo, e o tema escolhido foi o atual cenário dos festivais de música.
Participaram do evento os principais representantes de festivais de música do eixo RJ-SP, além de executivos de algumas das maiores produtoras de eventos do Brasil.
Apesar de uma iniciativa muito bem-vinda, esse foi mais um momento que nos mostrou que a realidade do setor de festivais que já era complexa antes da pandemia, passou a ficar ainda mais depois dela.
O evento nos motivou a refletir um pouco mais a fundo a questão: o que está acontecendo com os festivais em 2024?
Abaixo, problematizamos e contextualizamos alguns (dos diversos) desafios que inspiraram a pergunta central deste artigo.
Direcionadores das mudanças
Alguns dos maiores festivais do mundo, tradicionalmente conhecidos por esgotarem seus ingressos rapidamente, sofreram ou estão sofrendo para atingir o sold out: Rock in Rio, Coachella e Burning Man são exemplos.
Outros tantos foram cancelados, sendo só no Reino Unido mais de 60, segundo a Association of Independent Festivals, e pelo menos outros 60 na Holanda.
No Brasil, desde a semana passada começaram a surgir rumores sobre o cancelamento da franquia Primavera Sound na América Latina (até o fechamento deste artigo, em 27/08, o festival segue confirmado e com vendas de ingressos abertas).
Sejam problemas com as vendas dos ingressos ou cancelamentos, é importante explicar que cada caso é único e merece uma investigação particular.
Existem diferentes tipos e tamanhos de festivais, assim como as motivações de quem os produz e seus respectivos modelos de negócio. O país e até mesmo o estado e cidade onde acontecem esses eventos também influenciam diretamente nessa equação.
Porém, existem fatores que são transversais ao setor de festivais, impactando todos os eventos dessa indústria, dos mega festivais como Lollapalooza e Rock in Rio aos de pequeno e médio porte.
Desafios transversais que impactam todos os festivais
Emergência climática
The Town, Doce Maravilha, Rap Festival e Tomorrowland foram alguns dos muitos festivais que aconteceram em 2023 no Brasil e cuja experiência foi agressivamente prejudicada em função das fortes chuvas.
Na gringa, um dos mais icônicos exemplos de quase-tragédia aconteceu no Burning Man, que, mesmo acontecendo no deserto, recebeu uma forte tempestade em 2023 colocando em risco as 70 mil pessoas que participaram daquela edição. Agora em 2024, o evento novamente está passando aperto por condições climáticas.
Quando não é a chuva extrema, é o calor. Quem participou dos festivais Coala e Primavera Sound em 2023 sabe do que estamos falando.
E se pegarmos um exemplo mais recente, não podemos ignorar o alerta que acende com os cancelamentos e adiamentos de eventos em função dos incêndios no interior de São Paulo e Goiânia.
Mudanças geracionais
Em 2022, o portal de notícias Stereogum publicou um excelente artigo: “Porque os festivais de música estão tão caóticos esse ano?”. Entre os argumentos, um que mais chama a atenção é a falta de familiaridade somada à ânsia de viver experiências presenciais da Geração Z, que ficou dois anos “trancada” em casa por causa da Covid-19.
“O que acontece quando você reúne um bando de adolescentes desesperados por experiências presenciais e que nunca participaram antes de um show de larga escala? Como você pode esperar, caos absoluto”, diz a jornalista Leila Jorda, do Paste.
Em 2022, quase aconteceu uma tragédia no festival Primavera Sound de Barcelona, quando um número de participantes acima das expectativas encontrou uma organização despreparada e uma produção com muitas falhas. Segundo Marta Pallarès, porta-voz do festival, cerca de 80% dos participantes desta edição estavam indo pela primeira vez ao evento.
Enquanto isso, gerações anteriores, a millennial em especial, principal responsável pela era da economia das experiências e pelo hype de festivais como o Coachella, Burning man e Tomorrowland, envelheceram, muitos tiveram filhos e passaram a priorizar conforto e conveniência em suas opções de lazer.
Novos festivais brasileiros como o C6 Fest e Doce Maravilha estão atentos aos sinais deste público, apostando em uma programação musical que encerra-se às dez da noite, além de locais de fácil acesso.
Altos preços de fornecedores e falta de mão de obra qualificada
Depois de dois anos de pandemia, foram muitas as empresas que forneciam equipamentos e mão de obra que foram obrigadas a fechar as portas.
Com a ausência dos eventos presenciais, muitos profissionais precisaram gerar renda no período, migrando dos bastidores para outras profissões. Embora não haja uma pesquisa com dados oficiais, arriscamos dizer que uma boa parte deles nunca mais voltou a trabalhar em eventos.
Já as empresas e profissionais que sobreviveram à pandemia, foram obrigados a reajustar seus preços.
Seguindo a lei da oferta e demanda, inspirados no tal “efeito champanhe” e na explosão de eventos na reabertura da pandemia, o preço desses fornecedores chegou a aumentar em até 30% ou 40% quando comparados com a realidade antes da pandemia.
O alto custo de locações de equipamentos, espaços e recursos humanos só continua aumentando, o que força produtores de festivais a revisar constantemente a sua planilha (especialmente em tempos de emergência climática).
Problema dos lineups e excesso de festivais
Independente do tipo ou tamanho do festival, essa parece ser uma dor universal.
Os mega festivais queixam-se da ausência de headliners do tipo que enchem estádios. Na gringa, já tem até um nome para esse efeito, headliner drought, ou “seca dos headliners”.
Os organizadores de festivais de grande e médio porte queixam-se da repetição de nomes e também dos altos cachês cobrados por artistas. Mais uma vez, o valor é reflexo da alta demanda diante de uma explosão de novos festivais pós-pandêmicos.
Segundo o Mapa dos Festivais, 30 novos festivais surgiram no Brasil no primeiro semestre de 2024, um aumento de 7% em comparação com 2023. Hoje são 360 festivais cadastrados na plataforma.
Porém, é possível afirmar que essa estatística é conservadora, já que são muitos os tipos de festivais e o Brasil é um país de tamanho continental. Em 2018, por exemplo, um estudo feito entre a Sympla e a SIM São Paulo revelou que 1.928 festivais foram realizados no Brasil entre 2016 e 2018.
Instabilidade econômica
Depois da pandemia, guerras. Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina, todas afetando diretamente o frágil equilíbrio econômico mundial.
O Brasil foi um dos países mais afetados já que depende fortemente de países como a China e os EUA em suas relações comerciais.
O efeito? O Real foi uma das moedas mais desvalorizadas do mundo nos últimos anos, o que impacta diretamente a contratação de artistas e também o preço de fornecedores e equipamentos gringos.
Falta de incentivo governamental
Se a Inglaterra, Holanda e Austrália, três países que são referências em festivais, queixam-se da falta de suporte por parte do governo para manter a indústria dos festivais de pé depois dos anos de pandemia, que dirá do Brasil?
No Brasil, tivemos o Perse – Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, que foi prorrogado com uma reserva de R$ 15 bilhões para a desoneração tributária de empresas de eventos até o final de 2026. Mas há controvérsias, como o uso indevido do benefício fiscal – e a autorregularização está aberta a partir de 30 de agosto, viu?
A questão é que estamos falando de um país que conta com milhares de festivais, além dos outros tipos de eventos que dependem do incentivo governamental para existir.
E, como vemos nos discursos de festivais mundo afora, não parece ter sido o suficiente.
E então, qual será o futuro dos festivais?
Parece óbvio, mas não custa lembrar que muitos produtores de festivais se dedicam anualmente para a realização de um evento que pode ser cancelado no próprio dia por ameaças naturais.
É um negócio extremamente arriscado, muitas vezes financiado pelo caixa da edição anterior.
Foi esse o motivo, por exemplo, que forçou os sócios do festival SXSW, que acontecia anualmente no Texas desde 1987, a venderem a sua sociedade para o grupo de mídia Penske depois de serem obrigados a cancelar a sua edição de 2020 por ordem do governo local (mais uma vez, a pandemia…)
Todos os fatores acima desestabilizam ainda mais a situação dos festivais.
“Tudo leva tempo e o tempo leva tudo”. Só mesmo ele vai nos ajudar a entender o futuro dos festivais no Brasil.