Se muitas vezes os eventos são sinônimos de perrengue, por que continuamos indo?
Essa foi a pergunta que inspirou a nossa palestra no HackTown 2024.
Mas, para sermos sinceros, ela passa pela nossa cabeça de vez em sempre.
Já deixamos o aviso de que a Cápsula de hoje vai ser um pouco mais reflexiva, mas essa é uma daquelas questões que vale a pena colocar na mesa.
Para buscar encontrar essa resposta, precisamos reconhecer que o setor de eventos teve um grande divisor de águas: a pandemia.
Efeitos colaterais de dois anos em pausa
Muita coisa aconteceu e vem acontecendo no setor de eventos pós-pandemia.
Efeito champanhe para uns (poucos), cancelamentos, revisão de orçamento e gestão de crise para outros (muitos).
Uma geração que envelheceu e ficou acomodada com deliveries e streaming. Outra, nova, que teve dois anos interrompidos e caiu de paraquedas nos eventos, afobada e inexperiente.
E nesse meio tempo, ameaças que fragilizaram ainda mais o setor de eventos: emergência climática, guerras, instabilidade economia global, desvalorização do real… e, claro, a tal Inteligência Artificial generativa.
“Tá, mas o que isso tem a ver com a pergunta do início deste artigo?”
Primeiro, toda mudança faz parte de um contexto. O contexto da pandemia, pelo menos nos eventos, ainda não acabou. Todo esse setor ainda está tentando se adaptar ao novo (a)normal.
Segundo, ainda sobre contexto, o distanciamento social durante a pandemia ensinou aos organizadores de eventos duas lições importantes.
- O show não acabou, apenas mudou de palco. Durante o isolamento, nossa necessidade social só foi intensificada. Assistimos a velórios e reuniões de trabalho em games, participamos de festivais digitais e festas de aniversários no Zoom.
- Porém, a verdade é que 90% dos eventos produzidos pela pandemia foram do tipo “comida de hospital”. Eventos sem sal, apenas com os nutrientes necessários e adequados diante daquele contexto.
Daí, vem a resposta para a questão de um milhão de dólares:
Afinal, o perrengue faz parte do evento?
Acreditamos que continuamos frequentando eventos justamente porque valorizamos a fricção. Uma dose de perrengue pode valorizar um evento ou experiência.
Mas antes de você torcer o nariz, é importante esclarecer que não estamos glorificando perrengues.
Estamos falando sobre os tipos de fricção que existem quando estamos convivendo em grupo – o que nos foi privado no tempo de isolamento da pandemia.
Por exemplo, gastar horas para chegar em um evento, enfrentar filas, encarar tumultos e voltar para casa exaustos, mas felizes. Quem esteve no show da Madonna sabe do que estamos falando.
Essas fricções, muitas vezes, são o tempero de uma boa experiência. Elas são a pitada de sal que faz a diferença.
É claro, que, errando a dose, quem cria experiências também põe tudo a perder. Alguns perrengues são inadmissíveis (Fyre Festival, Woodstock 99…).
Mas aqui não estamos falando sobre casos de serviços ruins ou erros de produção. E, sim, das esperadas fricções quando são reunidas milhares de pessoas em um mesmo tempo e espaço.
O que queremos dizer é que, sim, muitas vezes são os pequenos perrengues que tornam aquela experiência especial.
Já conversou com alguém que encarou a lama do Rock in Rio de 85? Ou de quem passou uma semana no deserto no Burning Man? Ou de quem acordou cedo e ficou na fila, mas conseguiu entrar na palestra da Amy Webb no SXSW? Apostamos com você que as respostas são surpreendentemente positivas. Apaixonadas, até.
Existe até um nome técnico para isso: viés de esforço (ou do julgamento), que pode levar pessoas a valorizarem mais o que exigiu mais esforço. “No pain, no gain”, entende? É o esforço de planejar aquela viagem dos sonhos. De conseguir comprar aquele ingresso. De encarar a fila, a multidão, resistir até o fim. A recompensa são as memórias que viram histórias, contadas e repetidas.
A tecnologia – e em especial a inteligência artificial – vende o sonho de um mundo sem fricção. Acontece que vivemos em um contexto tecno-fetichista, em que ela surge como a solução para todos os problemas da humanidade – justamente vendendo o sonho de um mundo sem fricção.
O problema é que a ausência completa de fricção nos desumaniza, nos deixa apáticos e preguiçosos.
Aceitamos uma realidade construída por algoritmos em redes sociais, engenhosamente criadas para nos entregar aquilo que choca mais, que polariza mais, que nos divide em um mundo binário de zero ou um, quando somos muito, mas muito mais complexos que isso.
É aí que entram os eventos.
Porque eventos são – por natureza – masterclasses de fricção. Não existe evento executado igual ao planejado. Eventos refletem o caos sincronizado da vida. Fricções, perrengues, fazem parte, porque fazem parte justamente desse caos.
Para criadores de experiências, existe um equilíbrio místico, quase alquímico, entre a dose de fricção que o público deve encarar para tornar aquele evento ou experiência épica.
Como diz o ditado: “a diferença entre o veneno e a cura é a dose”.