Chega de saudade! Os festivais voltaram com tudo e aquele grito preso na garganta falta pouco pra sair.
Rock The Mountain e Queremos! (RJ), Breve e Sarará (BH), Forró Lua Cheia e Coala (SP) são alguns que já anunciaram data e line-up para a alegria dos fãs.
Isso sem falar nos mega-festivais: Lollapalooza São Paulo, Rock in Rio e o novíssimo The Town, que chega em Sampa em 2023, com a promessa de arrastar 600 mil pessoas em sua 1ª edição.
Depois de quase dois anos de lives, é fato que a gente não vê a hora de se jogar no meio da pista, curtir um show com a galera, se emocionar com nossos artistas favoritos e viver intensamente tudo aquilo que o sociólogo Émile Durkheim chamou de efervescência coletiva.
Porém, nem tudo são flores nesse jardim de delícias terrenas chamados festivais. A seguir, entenda porque a volta dos festivais também pode ser um problema. E o que pode ser feito para que não seja.
Antes de problematizarmos a volta dos festivais, saiba que:
- Desde 2015, pesquisamos e escrevemos mais de 500 artigos autorais sobre a cultura dos festivais para o Projeto Pulso. Ao longo desses anos conhecemos mais de 70 festivais nas Américas, Europa e Ásia.
- Somos consultores especialistas em festivais. Trabalhamos ao lado de marcas globais (Heineken, Pepsico, Natura) e também de festivais (Lollapalooza, Rock in Rio, Tomorrowland Brasil) ajudando-os a repensarem as suas experiências.
- Já fomos convidados para palestrar em empresas e festivais de criatividade e inovação, publicarmos 2 e-books sobre festivais e criamos em 2018 o primeiro curso online do Brasil sobre a ressignificação dos festivais na era da experiência.
Ou seja, temos mais que lugar de fala para falarmos sobre festivais.
Mas, acima de tudo, somos apaixonados por festivais! Alguns dos melhores momentos de nossas vidas aconteceram nesses eventos. Programamos viagens de acordo com o calendário de festivais. Nos tornamos nômades em 2017 justamente para conhecermos os festivais que mais admiramos no Brasil e no mundo.
Dito isso, que fique claro que somos 110% a favor da volta dos festivais.
O problema é como isso vem acontecendo.
Quando o efeito champagne e o excesso de sede ao pote viraram tragédia
No último dia 5/11, nove pessoas morreram e centenas de outras ficaram feriadas durante o Astroworld, festival do rapper norte-americano Travis Scott que aconteceu em Houston, promovido pela gigante do entretenimento Live Nation.
A Live Nation é “dona” de mais de 100 festivais pelo mundo. No Brasil, ela possui participação societária no Rock in Rio e Lollapalooza.
Apesar de o rapper virar o centro das atenções dessa tragédia, tendo que responder por pelo menos 58 processos até o momento, a organização do evento é a grande culpada. O artista, conhecido por incitar violência entre seus fãs, estava apresentando o seu show para um público de 50 mil pessoas. Cabia à organização do festival a segurança e bem-estar de seus frequentadores.
Arcar com custos de advogados para compensar o incompensável para as famílias não é um problema. A Live Nation registrou receita em 2020 de 1,86 bilhões de dólares (justo o ano da pandemia!). Inclusive, na mesma sexta-feira em que nove jovens morreram durante o show do Travis Scott, as ações da Live Nation bateram um recorde histórico, atingindo a marca de R$ 136,40 por ação.
Embora tenha acontecido nos EUA, essa tragédia é uma amostra do que pode acontecer no Brasil, caso organizadores de festivais não tenham o cuidado redobrado para a volta desses eventos por aqui.
“Toda ação ação corresponde a uma reação de igual intensidade”, já dizia a 3ª Lei de Newton. O efeito champagne que as empresas do setor de entretenimento ao vivo tanto esperam acontecer vem acompanhado de uma demanda reprimida de hedonismo intenso por parte do público em escala igual.
O jornalista e escritor Ruy Castro publicou um livro sobre “o carnaval mais intenso de todos os tempos”. Foi o Carnaval da Guerra e da Gripe, que aconteceu em 1919, depois da gripe espanhola contaminar mais da metade do Brasil e matar milhares de pessoas. Segundo o autor, “as pessoas celebraram como se fosse o último Carnaval de suas vidas”.
Qualquer semelhança com o que pode acontecer no Carnaval de 2022 não é mera coincidência. Ao que tudo indica, esse será “O” Carnaval mais intenso de todos os tempos.
Por isso, organizadores de eventos – e órgãos públicos – devem ter cuidado redobrado para que tragédias como a que aconteceu no Astroworld não aconteçam por aqui também.
Precisamos falar sobre sustentabilidade
Outra conta que nem todos os festivais estão de olho é a sustentabilidade.
A Cop26 e o último relatório publicado pela ONU deixaram o mundo ainda mais alerta quanto aos impactos do aquecimento global. A meta de limitar a elevação de temperatura em 1,5ºC é frágil e as consequências já são vistas em todo o mundo.
Não é preciso ser negacionista para perceber que o clima em todas as regiões do Brasil está bastante diferente de alguns anos atrás. Além da crise sanitária, temos uma crise energética e a possibilidade de diversas regiões do Brasil sofrerem com falta de água e luz nesse verão.
E o que isso tem a ver com os festivais? Tudo.
Festivais causam um impacto agressivo no meio ambiente, geram lixo em quantidades alarmantes e a logística de artistas internacionais (e fãs que pegam avião para viajar) são ainda responsáveis por emissões de carbono em níveis críticos.
Pode anotar: daqui a pouco tempo, os festivais que não tratarem a sustentabilidade como uma premissa necessária serão tratados como vilões da sociedade, da mesma forma que o cigarro ou carros não-elétricos.
Por sorte, artistas como o Coldplay e Massive Attack estão encabeçando um movimento de turnês sustentáveis que darão exemplo para os demais.
Mas esse movimento só vai acontecer de verdade quando as marcas patrocinadoras começarem a cobrar esse tipo de postura dos festivais. Heineken e Natura já vêm dando bons exemplos nesse sentido.
Diversidade e igualdade de gêneros
Diversidade e igualdade de gêneros eram duas pautas fortíssimas nos festivais nacionais até a pandemia chegar.
A campanha The New Normal do festival catalão Primavera Sound de 2019 foi o símbolo máximo desse movimento, que também é representado por iniciativas como a Keychange, um compromisso por igualdade de gêneros já assinado por mais de 500 festivais pelo mundo. Aqui no Brasil a WME acabou de lançar o Selo Igual, também já recebido por alguns festivais por aqui.
As redes sociais não pouparam o Lollapalooza Brasil, por exemplo, pela sua falta de representatividade de mulheres e pessoas não binárias. De todos os artistas anunciados, menos de 22% são mulheres – cis e trans.
Para 88% das pessoas que nos seguem no Instagram, a equidade de gêneros é importante no line up dos festivais. A moral aqui é essa: não basta ter um line-up incrível. Para ser considerado um festival contemporâneo e representativo para o século XXI, é preciso dialogar com causas. E não apenas no palco.
Festivais são como um antídoto para um mundo cada vez mais polarizado e mediado por algoritmos. É por causa deles que conhecemos pessoas e artistas, baixamos nossas barreiras sociais, exercitamos a empatia e criamos pontes ao invés de muros.
Curadores de festivais devem ser os primeiros a dar o exemplo ao planejarem seus lineups. E as marcas patrocinadoras que tanto levantam a bandeira da diversidade, inclusão e representatividade, devem ser também as primeiras a cobrar essa postura dos eventos que buscam como parceiros.
O antigo normal não deveria nos representar
Parece que acabou a pandemia, só que não.
A Europa voltou a registrar um aumento de casos. Países como a Holanda voltaram a exigir que a população use máscaras, a Alemanha triplicou o número de casos em uma semana e China e Aústria acabaram de decretar rígidos lockdown.
A situação no Brasil é favorável. Diferente dos países do hemisfério norte, que estão entrando agora no inverno, por aqui daqui a pouco começa o verão.
O Brasil já tem 59.4% da população totalmente vacinada (acima dos EUA, com 58.7%) e as vacinas estão disponíveis para a maior parte da população. Idosos já estão tomando a terceira dose.
Mas isso não significa que estamos livres de uma nova onda.
Por isso, para curtir os festivais que tanto aguardamos voltar, é preciso cautela. Tanto para os frequentadores, como – principalmente – para os organizadores de eventos.
Tivemos uma oportunidade única nas mãos de olhar para o antigo “normal” e ressignificá-lo. Ainda há tempo de revisar a forma como se planeja e se produz um festival, do seu line-up a protocolos sanitários e a segurança de seus fãs.
Esperamos que os festivais do futuro sejam mais inclusivos, diversos, seguros e sustentáveis.